domingo, 12 de outubro de 2008

O Haver - Vinicius de Moraes (participação de Edu Lobo)

O Haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

9 comentários:

Elisabete disse...

"Resta essa vontade de chorar diante da beleza"

É isso que apetece diante do grande, do enorme Vinicius.
Muito obrigada!

Um beijo do meu coração ao seu

Elisabete

Anônimo disse...

Cristina, faltou talvez a quadra que vai aí abaxio, para que o teu retrato ficasse completo:
Restam teus pés que vão aonde é mais longe,
O teu amor a quem não é amado,
O teu sorriso inteiro onde há mais choro,
A tua mão que afaga onde mais dói.

Cris disse...

Elisabete minha querida,sim resta esta vontade de chorar diante de tanta beleza!E a coragem de comprometer-se sem necessidade.
Adoro este poema desabafo!?E esta voz rouca e melódica como se o dissesse baixinho ao pé do ouvido.
Retribuo este beijo caloroso.

Cris disse...

Daniel
Nossa que sabor estar na leitura de Vinícius!
E como descrever a emoção de ganhar uma quadra sua?

Anônimo disse...

Olá Cris,
Não fiques preocupada, está?
É difícil explicar o que sinto qundo leio Vinicius de Moraes ou quando ouço os seus poemas ditos naquela foz quente, cheia e funda...
O teu blog está cada vez mais bonito e, quem naõ te conhece, fica a conhecer-te.
Um beijinho matinal

Anônimo disse...

Para uma Menina como uma Flor

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz saborosa e doce, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você pirar um pouco mais, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, fuma seus cigarros, bebe coca-cola sem culpa, e adora de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e tenho certeza que choraria se as malas seguissem sozinhas e você morreria de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
Ainda que não sonhes comigo , não transfira sua d.d.c. para o meu cotidiano, tenho certeza que implicaria comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um cachorrinho que dorme abraçada e que tudo o que eu mais queria era que fosse de mim que falasse a ele.Sei que quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação.
E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora batata frita , eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho.
E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu adaptei esta prosa de Vinícius tão bonita para você. Afinal eu li que gostasse das quadras do tal Daniel. E por não saber fazer as quadras, quero que saibas que toda vez que leio essa prosa, ainda duvido se não fostes esta menina de Vinícius
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo sua cara ao ler e tentar adivinhar quem fora o autor deste comentário.
Saiba que me levantaria para recolher você no meu abraço. Sim, meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.

Cris disse...

Hum...Pensei,pensei.E deduzi que este anônimo tão querido e doce é alguém encabulado que sempre visita Pasárgada.Este é seu segundo comentário.Sei que aprecia Vinícius como eu.Afinal,"Para uma menina como uma flor",fora o primeiro livro de Vinícius que ganhei ainda criança.E este anônimo conhece a história.
Com muito amor, agradeço a intertextualidade, meu filho(Allan).

Anônimo disse...

Então Cris, como não seria limpído e doce o vinho produzido com o fruto de tua própria casta?
Fala de amor com a peculiáridade do amadurecimento e com a pureza de um menino...
Um grande abraço!

Cris disse...

Gilmar
Quanta felicidade saber de tua visita.
Eu o amo .
Muitos beijos barulhentos.