segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Vamos continuar a viagem? Povoação


Meus queridos amigos


Para festejar o início de mais uma semana,convido-os a dar continuidade ao passeio delicioso pela Ilha de São Miguel - Açores... Meu olhar alcança os acenos de nosso condutor Daniel de Sá, pressinto o encantamento e corro para segurar sua mão. Não posso perder essa viagem. Vamos lá pessoal, ele está sorrindo...

Povoação

Passando a ribeira dos Caimbos, num longo rodeio pelo sopé do Lombo Gordo, o viajante muda de concelho. Mas a paisagem não sabe disso, e permanece igual. Montanhas à direita, o mar à esquerda. Ravinas, arribas, precipícios. Sempre entre o susto e o sonho. Vem aí Água Retorta, ou vai-se por aí a Água Retorta, que dá as boas-vindas a quem uma légua atrás entrara no concelho da Povoação. Se fosse ave ou vento, teria andado metade disso somente. E, sendo a terra tão enrugada, tão áspera para caminhar nela e tão suave para nela pôr os olhos, acaba-se a pique sobre o mar, onde cai volteando a água de uma ribeira que, por ser assim, recebeu nome e o deu ao povoado. Um povoado que parece dois. Porque em terra chã fica o núcleo à volta da igreja, que é de Nossa Senhora da Penha de França, e mais acima se desenvolveu outro, obedecendo aos declives do lugar.
O viajante não sente cansaço, porque cada recanto visto é um prémio para a longuidão da jornada. Mais outra légua, chega à estrada que desce para o Faial da Terra. Caminho que é de ida e volta, e que se torce e retorce para não ser quase vertical. E de repente a terra se faz plana, pequena fajã que uma ribeira atravessa dividindo o povoado em duas partes. Voltando as costas ao mar, pode parecer que se está numa aldeia dos Alpes. E as ondas não precisam de se elevar muito para respingarem a terra que ali lhes fica quase resvés. Um pouco mais de ânimo, e podem até acabar como que ajoelhadas à porta da igreja de Nossa Senhora da Graça.
Por entre os montes que encaixilham a paisagem, uma dúzia de casas às quais o tempo esvaziará de gente e as intempéries se encarregarão de esventrar, de cegar as janelas, de escancarar as portas. É o Sanguinho. Mas aquelas casas hão-de ser depois recuperadas, reabilitadas, calafetadas, electrificadas, canalizadas. Para fingirem ser o que eram em condições de bem receber turistas. Não importará, porque a natureza há-de permanecer igual e milenar. Viver ali só poderia ter sido ideia de poetas, de eremitas ou de pobres.
A próxima descida será já dentro da caldeira de colapso onde se aconchega a Povoação. (Ah, mas que é isso de caldeira de colapso? É o que acontece quando o interior de um cone vulcânico se desmorona por muito rapidamente se ter esvaziado a câmara magmática.) O viajante pára no Pico Longo a contemplar a cena. O que resta dessa tal caldeira, que o mar esboroou a Sul. Um espectáculo grandioso cujo principal cenário desce em forma de lombas desde o pico da Vara e o planalto dos Graminhais. Paisagem a perder de vista e de se perder a vista nela. Alguém tenta dizer o nome daquelas e das outras lombas que as ladeiam a Leste e a Oeste, completada ou coroada cada uma por um pequeno povoado. Vai contando pelos dedos. Faltou a do Carro. Repete-se a contagem e o engano. Mas agora esqueceu foi a do Botão. Depois consegue a lengalenga de dizer as sete sem errar nem o número nem a ordem: Pós, Alcaide, Loução, Pomar, Botão, Carro, Cavaleiro.
A estrada que desce à vila atravessa a Lomba do Alcaide. Lá em baixo, não longe da ribeira que já tem provocado tragédias, desembarcaram os primeiros que puseram pé nesta ilha, talvez em frente ao sítio onde ainda resiste a bela matriz velha. O viajante olha as ondas como se contemplasse um monumento histórico. E também ali houve o primeiro povoado e o primeiro nascimento humano. Por ter sido a única durante algum tempo, não precisou de mais nome do que este que mantém de Povoação, por vezes acrescentado, no princípio, com a designação de Nova. Quando surgiram outras, passou a ser conhecida como Povoação Velha. Mas cedo voltou à simplicidade quase pagã da falta de um baptismo verdadeiro.
Subindo pela Lomba do Cavaleiro, repete-se a visão de sossegada grandeza. Lá num alto, destaca-se a ermida de Santa Bárbara, que talvez esteja no lugar da primeira que se construiu na ilha. E, apesar de este ter sido o primeiro lugar onde em S. Miguel viveu gente, a Povoação só foi elevada a vila e sede de concelho em 3 de Julho de 1839.
Quando o viajante passa no caminho que leva à Ribeira Quente, já é tarde. Nem sequer haverá tempo de parar nas Furnas para comprar um bolo lêvedo ou uma maçaroca de milho cozido nas caldeiras. Ir àquela aldeia de pescadores, que nos tempos de crise fornecia de chicharros os pobres de grande parte da ilha, ficará para outro dia. O seu nome deve-se à ribeira dos Tambores, que nasce na lagoa das Furnas e ali desagua, mas que recebe a afluência de águas quentes naquela freguesia. Desde pequeno que ouviu falar nas quase lendárias ruas do povoado, como que espremido numa nesga de terra, com montes que o apertam de um lado e o mar que o abraça ou ameaça do outro. Ruas, algumas delas, onde não cabe um burro carregado, diziam-lhe. E onde as vizinhas, de janela a janela, podiam pedir umas brasas para acender o lume. E é verdade. Parece um bairro árabe em miniatura. Nem sequer as vielas de Alfama serão assim tão estreitas. A igreja, dedicada a São Paulo, está agora num lugar elevado, assim protegida das vagas de tempestade, que já arruinaram dois templos antes de este ter sido edificado. Para lá chegar, e até ao século XX, o mar era o melhor caminho. Mas em 1936 e 1940 foram abertos os dois únicos túneis viários de S. Miguel. Quando o viajante, anos mais tarde, descobrir um perturbador efeito de ilusão óptica, há-de repetir a experiência muitas vezes: depois de passada a curva a seguir ao segundo túnel, e a meio da pequena recta que se lhe segue, dá a impressão absoluta de que se continua a descer; no entanto, parando e pondo o motor em ponto morto, o carro recua com inesperada velocidade.
A sua praia é formosa e famosa. Ficam-lhe por cima altas arribas, e tem aquecimento natural em algumas zonas, devido a fontes hidrotermais a poucos metros da linha de costa. Grande parte do terreno onde assenta a freguesia deve-se a uma enorme derrocada em 1588 e ao vulcão de 1630. Mas é também uma das que mais população perderam nas últimas décadas do século XX. Em 1965 havia 2421 habitantes, para os censos de 2001 lhe atribuírem somente 798.
(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

2 comentários:

Delfim Peixoto disse...

Um passeio bonito

Cris disse...

Daniel
Não me canso de ler estes passeios que faço de mãos dadas contigo a me conduzir.
São maravilhosos.É um momento de pura magia.
Beijos meu anjo.