quinta-feira, 16 de outubro de 2008

E a viagem continua...


Amigos,venho convidá-los para mais um delicioso passeio.
Os lugares são mágicos, e as mãos de nosso condutor pura magia.
Fora este olhar que me roubara a alma.
A primeira vez que li Daniel, percebi que dificilmente conseguiria afastar meus passos.E quando alcancei suas mãos,tive a certeza de que os lugares,as personagens,o próprio tempo e espaço fariam diferença se fossem descritos por outras mãos, desvendados por outros olhos,e sentidos por outra alma. Percebam durante a viagem a doçura,e ternura com que este viajante percebe tanta beleza e a suavidade de seus passos.
Desejo repartir meu enorme prazer em ler meu escritor eleito : Daniel de Sá.

O circo da água

Peregrino das três lagoas

Se pudesse percorrer-se o mundo andando a pé, esta seria a melhor maneira de o conhecer. À medida que se tornou mais fácil ir a terras longínquas muitas vezes se foi descuidando as que nos ficam perto.
O viajante conheceu as mais afamadas lagoas da ilha segundo esse modo antigo e sem pressas de usar os pés para fazer o caminho. Em longas mas nem por isso menos fascinantes jornadas. A primeira foi a das Sete Cidades, indo das Feteiras do Sul com dois amigos. Tudo é de admirar por ali acima, mas ninguém está preparado para a revelação do esplendor. Pode já ter-se visto mil fotos e documentários, mas em nada se consegue imitar a realidade. O espaço é imenso, o silêncio parece abafar até os ruídos que por acaso se ouçam, o verde das encostas e dos cumes irmana-se com o azul do céu e do mar na mais perfeita das harmonias. E lá em baixo, no meio daquela antiga cratera que se abateu e assim se fez caldeira, as misteriosas, míticas, lendárias lagoas gémeas. Uma verde, reflectindo as cores do fundo e das vertentes, a outra azul, espelhando o céu. Nesse tempo as cores ainda se distinguiam com a nitidez que a transformação das terras de pão em mananciais de leite quase viria a ofuscar.
Mas o maciço das Sete Cidades não é o guarda-jóias destas lagoas somente. Pode contar-se uma dúzia delas no espaço de cerca de uma légua para sudeste. As mais notáveis são as de Santiago e do Canário. O cronista Gaspar Frutuoso, que escreveu no século que se seguiu ao do povoamento, fala daquela com respeito, com uma espécie de temor. E, à sua fundura entre espesso arvoredo, acrescenta um pormenor em tom de mistério. Diz ele que nas suas águas foi “encontrada uma certa maneira de peixe, quase da feição de camarões, e pegado a um pau”. A lagoa do Canário, entre uma vegetação onde predominam musgos e arvoredo, dá de beber a Ponta Delgada. A esta Frutuoso chama “dos Canários”, e explica que o nome não lhe terá sido dado por causa daquelas avezinhas cantoras, que só mais tarde fizeram morada por cá, mas porque ali perto uns naturais das Canárias pastorearam cabras e ovelhas. Assim que o arquipélago de que Gullén de las Casas foi senhor, mais ou menos no tempo da descoberta desta ilha, deu nome não só àquelas aves, porque de lá vieram, mas também àquela lagoa.
Naquele tempo as pernas do viajante pesavam menos nas subidas do que agora nas descidas. Mas, no regresso, ao chegar à Vista do Rei, onde D. Carlos parou em Julho de 1901, por isso ficando a ser esse o nome do miradoiro real, já os três caminhantes estavam cansados. Cansados e sedentos como um legionário romano a quem se tivesse acabado a água com vinagre do cantil. Foi então que, naquele lugar onde tantos acontecem, mais um milagre aconteceu. Viram um homem, ao longe, que ordenhava uma vaca. Deus sabe quanto desejavam beber um pouco de leite! Como que tendo-lhes adivinhado o pensamento ou o desejo, o pastor, ou lavrador, ou anjo, quem quer que fosse que aquele vulto fosse, chamou-os acenando-lhes para que se aproximassem. E serviu-lhes, na tampa da lata, morno ainda, todo o leite que quiseram. Que S. Nicolau o tenha protegido ao longo da vida!
A segunda visita a uma das três mais famosas lagoas de S. Miguel fê-la o viajante mais um amigo, partindo da Maia. Era para ter sido um grupo grande, mas aos outros esmoreceu o ânimo e desistiram antes da partida.
As Furnas compensam todos os eventuais sacrifícios que seja preciso fazer para lá chegar. Aquele é um dos lugares do mundo mais conhecidos, mais estudados e mais admirados. Qualquer coisa que se diga a seu respeito já terá sido dita antes por alguém. É impossível, pois, tentar uma linguagem nova. A grandiosidade do conjunto percebe-se ou apercebe-se tanto mais quanto mais procuramos um ponto distante e alto que lhe seja sobranceiro. O mais visitado é o do Pico do Ferro, que fica no cimo de um ravina que desce a pique até quase às margens da lagoa. Mas o espectáculo, o fenómeno ou conjunto de fenómenos, aumenta de esplendor quando avistado do Salto do Cavalo ou do alto do Castelo Branco. As Furnas não são um lugar para se dizer o que é, mas para se ver como é.
Para a terceira destas peregrinações o viajante partiu da Chã do Rego de Água, entre a Lagoa e a Ribeira Grande. Estava em acampamento militar, e foi acompanhado por um amigo do Pico. A ilha parecia crescer à medida que o caminho subia. E quase toda ia surgindo deitada a Norte, e grande parte dela se alongando a Sul. A cada nova passada se diria que já valera a pena ter chegado ali, que não era preciso ir mais longe para se cumprir a plenitude dos sentidos. A flora mudava com a subida. Cada vez mais primitiva, mais selvagem, mais pura. Até ser pouco mais que musgos e queirós. Um último fôlego, e chegaram à estrada que desvenda o pico da Barrosa. Estava próxima a lagoa, dita do Fogo porque ali o vulcão adormecido despertou em 1563. E, nesse tempo, chamava-se incêndio a tão temidas e fascinantes manifestações da vitalidade da Terra.
Mais umas passadas, e eis o sonho. O encantamento. A dúvida entre o real e o imaginário. A perfeição absoluta. Há quem lhe chame a mais bela. Há quem não saiba o que dizer. Há quem não saiba o que pensar. Um pedaço de céu? Ou um pedaço de mundo a imitar o paraíso? O certo é que aquele é um lugar de reconciliação. Da natureza consigo mesma. Da gente com a vida. Inexplicável.

(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

3 comentários:

Anônimo disse...

Daniel

minha mãe tem razão,é muito bom ler o que você escreve,já estou até com vontade de conhecer os açores...
Beeijos!

Anônimo disse...

Obrigado, querida Thaís. Olha que a realidade é muito melhor ainda. A tua mãe que o diga.
Um beijo.
Daniel

Cris disse...

Thaís e Daniel.
As Ilhas Açorianas são magníficas,mas como tudo o que é belo depende do olhar para existir.
Há escritores que nos roubam a alma,e quando desenvolvem parte dela,está mudada,adornada,lapidada.
Fora Daniel de Sá quem me convidou para conhecer açores através de sua literatura,e mais do que a beleza da ilha o que buscava era encontrar os olhos que refletiam aquela alma.A alma do meu escritor.
Amo os dois muito.