quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Daniel de Sá - Vila Franca do Campo


Pasárgada tem a honra de registrar um pouquinho mais da alma doce, de Daniel de Sá. Nesta viagem, encantadora e cheia de ritos. Desejo que saboreiem tanto quanto eu, esta leitura.


Ao princípio foi aqui

Há coisas e animais que estão na paisagem como se fizessem parte dela desde o princípio do mundo. Ou como se fossem o que resta do paraíso terreal:
Árvores em fila indiana, no horizonte, sobre uma linha de festo, como desenhos infantis. Coelhos assustados atravessando a estrada em busca da refeição vespertina. Melros, sem pressa, recolhendo ao lusco-fusco. Pequenos núcleos de casas antigas em contracena com a paisagem...
Há um destes lugares que o viajante sempre entendeu assim, desde a surpresa da primeira vez que o avistou, de súbito revelado, depois de uma curva da estrada. O lugar da Praia, na freguesia de Água de Alto. Uma vintena de casas, talvez nem isso, entre duas ravinas que ladeiam a ribeira que escoa a água excedente da lagoa do Fogo. Não poderia haver melhor postal de boas-vindas para quem entra, pelo Poente, no concelho de Vila Franca do Campo.
Vila Franca, o município primaz da ilha. Na costa Sul, onde houve a primeira povoação, a primeira vila e a primeira cidade. Mas nem a primeira povoação foi a primeira vila, nem a primeira vila foi a primeira cidade. A primazia de Vila Franca do Campo perder-se-ia nas ruínas em que a transformou quase por completo a enorme derrocada de terras provocada pelo terramoto de 22 de Outubro de 1522. Faltava-lhe pouco tempo para completar meio século como vila e cabeça de toda a ilha de S. Miguel.
Depois da tragédia, foi preciso começar de novo. O viajante entra, sempre que pode, na bela matriz. Símbolo desse recomeço, dessa vontade de permanecer no lugar a que o coração se apegara. Símbolo porque foi reconstruída à semelhança do templo soterrado em lama. E porque expressa a crença de que os homens não se sentiam sós na desolação daquele vale de lágrimas. A torre e a fachada fazem lembrar a velha e ascética arquitectura românica, com uma incrustação de gótico a bordar a porta. Dentro, uma sucessão de altares e elementos decorativos que podem julgar-se um excesso ou um delírio. Mas que são um extraordinário espectáculo estético e místico. E à sua volta fez-se uma vila airosa e arejada, com ares de Renascimento nas proporções e no traçado das ruas. O pouco que restou depois da terrível subversão foi para os lados da freguesia de S. Pedro, onde se construiu logo depois da catástrofe uma ermida dedicada a Nossa Senhora do Rosário. E talvez tenham sido as orações nela rezadas que estiveram na origem das Romarias quaresmais.
Como quase sempre e em qualquer parte na Europa, foi a arquitectura religiosa o melhor que Vila Franca herdou dos séculos passados. Porque então os homens ainda não tinham substituído Deus por outros deuses menores. Em frente da matriz de S. Miguel Arcanjo, permanece o testemunho da caridade cristã no hospital da Misericórdia e na igreja anexa do Espírito Santo. Aqui se venera a imagem do Senhor Bom Jesus da Pedra, que tem uma das maiores festas da ilha, no último fim-de-semana de Agosto. As madeiras do que resta do convento de Santo André – a igreja e o locutório – têm o cheiro de quatro séculos de história. E a ermida de Nossa Senhora da Paz é um lugar de peregrinação dos crentes ou dos simples amantes das grandes paisagens. Mas uma árvore também pode ser um monumento. No Jardim Antero de Quental, enquadrado pela matriz, a Misericórdia e os Paços do Concelho, há uma que o é. Um dragoeiro, plantado no dia em que se casou o rei D. Luís, seis de Outubro de 1862.
O comprimento da Ponta Garça, a mais populosa freguesia do concelho, é famoso em toda a ilha. Mais de uma légua de extremo a extremo. O que faz com que a procissão da padroeira, Nossa Senhora da Piedade, alterne em cada ano o percurso, que uma vez se faz para Nascente e outra para Poente. Aliás, neste concelho a sucessão do casario é praticamente contínua. Da Ponta Garça passa-se logo à Ribeira das Tainhas, desta à Ribeira Seca, daqui para a vila, e da vila para Água de Alto.
Tudo lugares que merecem do viajante um olhar sem urgência. E com praias muito concorridas por perto, como as de Água de Alto e a da Vinha da Areia. Ou então esse prodígio da natureza, a piscina do ilhéu da Vila. O que resta da cratera de um vulcão extinto, a um quilómetro da costa e com 150 metros de diâmetro. O conjunto, que inclui o mar circundante, é reserva natural.

(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

6 comentários:

Elisabete disse...

Que belas estas etapas da viagem com Daniel de Sá e consigo Cris!
Os Açores como elo de ligação entre Portugal e o Brasil.
Mil beijos

Anônimo disse...

Obrigado, Elisabete.
Cristina, passa-se algo com a caixa de comentários daquele maravilhoso texto sobre o João Paulo, que me deixou com um nó na garganta e outro na alma. O meu comentário de espanto, de veneração mesmo, não ficou registado.
Um abraço muito forte, meu palhaço de Deus, minha libelinha.
Daniel

Anônimo disse...

Deus deu-te uma maneira tal de observares as paisagens e o mundo da natureza,que o dom da recriação parece morar nas tuas mãos, para que sintamos que é possivel renascer através do olhar.

Anônimo disse...

O anónimo é a Lia, mas eu assinei.Deve haver algum problema.
vou tentar de novo.

LIA

Anônimo disse...

Lia
Mas são indispensáveis olhos e coração como os teus ou os da Cristina para "verem" estas coisas.
Um abraço, amiga.
Daniel

Rui Vasco Neto disse...

Fico feliz, em dia de regresso, de ver o talento dos meus amigos em novas montras.
Siga a viagem.
beijos para uma, bacalhau para outro.
(sim, bacalhau: apertado!)
rvn