quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Nordeste - Daniel de Sá

Daniel, mais que o viajante,extasiados ficamos nós leitores, diante de tanta poesia , de tanta beleza textual e do resultado de tuas inspirações.
Não conheço outro que nos descreva esta Ilha com tanta Maestria.

Definitivamente és o meu escritor eleito.

Naquele tempo, o Nordeste ainda era longe. Dentro do concelho a viagem fazia-se numa estrada de que, em dias secos, se erguia um pó amarelado, finíssimo, constante. Nada nem ninguém se movia nela sem assinalar a passagem com nuvens de poeira. Que persistiam, insidiosas, se não havia uma aragem que as desfizesse sobre as searas, contra as casas, nos vales e nos outeiros.

Pela primeira vez o viajante foi além da Vila. Passou a Lomba da Pedreira, presépio armado durante todo o ano. Ficava para outro dia percorrer as suas ruas como pastor em Belém. E, de súbito, poucos quilómetros adiante, a mais inesperada das surpresas. A estrada alargava-se e era de asfalto. Haviam ficado para trás os barrocais das míticas ribeiras do Nordeste – a da Mulher, a Despe-te Que Suas, a do Guilherme... Perdidas, nas milhentas curvas do caminho e da paisagem, as tremendas arribas da Achada, das Feteiras, da Algarvia... Por aquelas bandas a ilha é sempre com mar ao fundo, mas apenas a servir de moldura, como se a ilha e o mar nada tivessem que ver entre si. Como se vivessem desavindos e só por acaso e a contragosto se tocassem na orla das escarpas.

Da estrada de asfalto o viajante não sabe o prodígio que a pôs tão longe, no mais improvável dos lugares, porque não se vê vivalma que a use ou ao menos lhe ponha a vista em cima. Mas ela continua a revelar um mundo cada vez mais estranho e mais fascinante. Ali, onde a ilha começou a ser feita há mais de quatro milhões de anos, tudo acontece à semelhança do final de um poema sinfónico, em que o tema se repita no ribombar de toda a orquestra. A cada curva passada o viajante olha à procura da diferença. E esta surge-lhe, mais que todas, no espanto de uma ribeira que, como as outras, desce dos lados onde o Pico da Vara começa a galgar o céu, e o priôlo, uma das aves mais raras do Mundo, se esconde na sua camuflagem que imita as nuvens.
O viajante pára. Alguém dos que o acompanham diz: “Ninguém fale.” Mas não era preciso. O único que se atreveu a falar foi aquele que pediu silêncio.

Não sabe o nome da ribeira que contempla, extasiado. Apenas percebe que ela desce a montanha como se tivesse pressa de fugir das alturas da Tronqueira. Depois acalma um pouco, e a falha geológica que aproveita para deitar-se ao mar alarga-se sem poupar espaço. As margens, até ao leito que não se vislumbra, estão adornadas com quase todas as espécies de árvores que há na ilha. A completar o espectáculo, o canto de milhares de pássaros. Nem um se avista. Nem de um sequer se distingue a voz, que assim de longe ecoam todas em uníssono.

Depois há-se saber que aquela ribeira é a dos Caimbos, porque, ao atravessá-la, os primeiros que por ali andaram usavam uns ganchos para se agarrarem às margens quando as subiam. Quanto à estrada que primeiro o surpreendeu, dizem-lhe que foi obra dos Serviços Florestais, que fizeram no Nordeste talvez os melhores actos de amor à Natureza de todas estas ilhas. (E naquele pico de onde a ribeira desce, o do Bartolomeu, que seria morada digna de duendes, há-de fazer-se um miradouro de conto de fadas.)

O viajante esquece a beleza triste dos povoados por que passou. Tinham todos a cor dos dias cinzentos do Inverno. Como se nunca houvesse sol durante o dia nem luar nas longas noites. Mas ama-os, na sua velha modéstia, deleita-se no contraste da sua pequenez com a imensidão do cenário. E tem confiança de que tudo há-de mudar. Só não imagina que será tanto e tão depressa. O que aquela gente sofre por estar viva! Há em todos, no entanto, uma delicadeza natural, uma boa educação que lhes anda agarrada à alma como as urzes e as queirós nas ravinas mais inacessíveis. Muitos anos mais tarde, até os lavradores e o gado, entre pasto e pasto, hão-de passear por caminhos de asfalto. E a beleza triste e cinzenta dará lugar a um permanente arraial de cor. Desde a Salga, com os seu jardins de caleidoscópio, até à apoteose da Vila do Nordeste, o viajante há-de surpreender-se com as flores à beira dos caminhos, nas casas e nos quintais, ou mesmo cobrindo os troncos de palmeiras na Fazenda. E, quando quiser ir da vila do Nordeste a Água Retorta, terá sempre uma dúvida: fazê-lo de ponta em ponta – do Arnel, onde desde 1876 o farol mais antigo dos Açores guia os navegantes, da Marquesa, do Sossego, da Madrugada – ou arriscar a viagem quase tocando o pináculo da ilha, no miradoiro ou miragem da Tronqueira.
(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

4 comentários:

Elisabete disse...

Que delícia estas palavras do Daniel de Sá acerca da "minha ilha" misteriosa e bela. O lugar mais bonito à face da Terra.
Obrigada pela lagrimita ao canto do olho.
Beijinho grande

Ibel disse...

Eu também me deleito na minha pequenez de leitora, com a extensão deste cenário pictórico colorido com a grandeza das palavras simples e exactas.

Daniel disse...

E eu, queridas amigas, deleito-me por me atrever a acreditar que vocês se deleitam.
Obrigado.

Cris disse...

Querida Elisabete
Também amo São Miguel.E não conheço outra pessoa que a descreva tão profundamente como Daniel.Podemos além de admirá-la ,senti-la pulsar dentro de nós.E isso é mágico.
Nunca esquecerei a homenagem a Guarda minha querida.Desenhastes para mim as histórias de meu avô.
muitos beijos e um longo abraço.