sábado, 27 de setembro de 2008

27 de setembro de 1924 - "Nascia Tiloca".






... Antes de desejar algo, preciso agradecer por tudo que me ensinou.
Aprendi contigo pequena grande Tiloca, a olhar para a vida com olhos mais generosos e a conviver com minha solidão.
Nossa história de amor começou numa manhã de primavera, e a partir daquele dia eu nunca mais seria à mesma.
Final de Setembro de 2004 estava cursando enfermagem e desenvolvia uma pesquisa de conhecimento da patologia hanseníase e para entender a patologia precisava conhecer o paciente. Fui então visitar a Colônia de Santa Teresa, que fora inaugurada em 11 de março de 1940, exclusivamente para internação de portadores de hanseníase, de todo Estado de Santa Catarina. Soube que ainda estavam por lá seus primeiros internos.
A Colônia fica em um lugar privilegiado pela natureza. Na estrada somos acompanhados pelas plantações de Eucalipto como a preparar nosso coração para adentrar em outro mundo. Lá onde nasce um rio nas entranhas dos arvoredos. Surge como um fio de esperança, por onde tantos internos mergulharam em fuga, retornando humilhados porque haviam fugido sem saber para onde, lá fora no mundo de cá, não havia ninguém e nada a sua espera: nem mesmo vida.
Quando alcancei os portões da colônia, meus olhos percorreram aquelas construções, cheguei mesmo a vacilar os passos, duvidei se conseguiria ir adiante, era um silêncio atordoante. O dia estava belo como costumam ser as manhãs primaveris, mas um frio percorria minha espinha e já não sabia se estava pronta para adentrar em tamanha solidão e silêncio.
Meus pensamentos estavam em desordem, olhava para aqueles portões e tinha conhecimento de que por muitos longos anos ficaram fechados e abrigaram tamanha crueldade e sofrimento. Eu questionava: Encontraria vida lá dentro? Que tipo de vida? Como sairia de lá?
Um olhar mais atento e percebi os jardins, livrando-me dos ruídos internos, pude ouvir o canto dos pássaros e esta visão encorajou-me a seguir em frente.
O cenário seria lindo e perfeito se não fosse tão triste, mas aquele silêncio agudo não devolvia paz. Caminhava por aquela mini cidade, até que... Como explicar? Meus olhos alcançaram uma criaturinha pequenina em frente à porta da casa 12. Fiquei presa dentro daquele olhar e meu coração aos saltos anunciava que naquele instante de espaço e tempo iniciava-se uma linda história de amor, que viria surpreender a todos, inclusive a nós duas. Ela dividiu comigo sua história e passou a esperar-me nas tardes de sábado para comer cuca feita por suas mãos e saborear um café.
Um dia Tiloca falou que em mim morava a solidão dos leprosos. Não compreendi e ela levou algumas semanas para explicar-me. E quando explicou fora a primeira vez que chorei diante de minha guerreira. A solidão dos leprosos é a solidão das almas incompreendidas. Pude ver isso dentro de seus olhos no primeiro instante em que lhe vi, enorme é a sua inquietude.
Tiloca contraiu a hanseníase (LEPRA) ainda criança.
Queria ir à escola, mas, era isolada e quando estendia sua mãozinha para a professora, esta se negava a segurar. Tinha apenas sete anos, ouvia as tias falarem: esta menina é leprosa. Vai morrer.
Foi para aquela colônia aos 22 anos.
Eram cassados naquela época pela vigilância sanitária, como cachorros: a ambulância chegava, os obrigava a entrar, levavam até aos portões da colônia, mandavam descer e diziam: vão morrer ai dentro. Saiam.
E assim, sem escolhas, eram jogados lá dentro, sem direito a nada, nenhum contato com o mundo lá fora. Aliás, lá fora ficava tudo, a juventude, a família, os sonhos, a dignidade, o copo na pia, a marca do corpo em seu colchão, a vida. Entravam naquele lugar pra morrer. Entretanto, Tiloca não morreu, aprendeu a arte da costura, amou,casou, teve filhos, escreveu sua história em um mundo muito particular. Sobreviveu a dor de ver pedaços de seu corpo morrer e cair, a perda dos filhos, os seios latejantes sem poder amamentar, a perda de seu amor pela viuvez, à solidão dos leprosos.
Parabéns, Tiloca, por ser tão boa filha deste nosso Deus, por ser tão guerreira, por todos os ensinamentos, e por tanta doçura.
Deixo aqui meu agradecimento de alma, por me deixar fazer parte de sua vida, e por amenizar minha solidão leprosa.
Eu a amo muito e talvez isso diga algo.

9 comentários:

Anônimo disse...

Cristina,

Sinto-me tão pequenina, quando me comparo contigo.
Mais palavras para quê?

Um grande abraço, tu também GRANDE GUERREIRA; "PALHAÇO DE DEUS".

Cris disse...

Querida Lia
Hoje é um daqueles dias em que tudo sai do lugar.Alguém que tanto amo e preciso,faz aniversário, e nem posso desejar muitos anos de vida,(desta vida),embora meu egoismo reze por isso.Tiloca decifrou minha alma como ninguém nesta vida,e ama-me com tanta segurança que jamais duvidei deste amor.
Posso mesmo garantir que fora no abraço da Tiloca que fui verdadeiramente amada nesta vida, e isso fez valer minha existência.
Na segunda passada, quando cheguei para visitá-los, ela abriu os olhinhos e falou:Obrigada meu Deus,achei que não fosse ver esses cachos dourados, e poder dizer o quanto te amo antes de morrer.
Lembrou do telefonema na noite de natal, logo após a oração peguei o telefone e liguei para ela,eu não sabia, era o primeiro telefonema que recebia na vida,e chorou ,não pelo telefonema e falou:"Tive certeza do teu amor por mim, porque não sei onde ou com quem estavas, o que tenho certeza é que fui a primeira pessoa em quem pensou naqueles primeiros minutos e isso fez valer minha vida."
Esses são os caminhos de Deus Lia, ele me concede estes amores estranhos, deve ser porque sou estranha rsrsrsrsrs.
Beijos no coração

Elisabete disse...

Cris,
Esta "história" é lindíssima e dá para ver que a sua alma não é menos linda.
Admiro-a e lamento não poder ser um bocadinho menos egoísta e seguir o seu exemplo.
Obrigada!
Um beijinho doce

Carlos César Pacheco disse...

Muitos parabéns pelos seu 84 anos de perseverança.

Margarida Baird disse...

Um abraço na guerreira nascendo outra vez. Muita luz em seu percurso! margarida

Susana disse...

Oi Cris

Que história maravilhosa de vida, que exemplo para todos nós. Dê um grande abraço na Tiloca, ela tem muito a nos ensinar.
Não tenhas dúvidas que as pessoas de nossas vidas nos foram concedidas por Deus na hora e no momento certos, nada é por acaso minha querida. És muito especial.
Beijos literários

Anônimo disse...

Quando alguém já disse tudo melhor do que nós somos capazes de o dizer, não vale a pena inventar. Por isso hoje, felicitando a Tiloca (que desde o Natal do ano passado, através de uma crónica da Cristina, se tornou em uma das minhas heroínas), cito Raoul Follereau, o tal que disse que “a única verdade é amar”:
“Se Cristo, amanhã, bater à tua porta,
Reconhecê-lo-ás?
Será com certeza um homem pobre,
Sem dúvida um homem só.”
Mas Cristo também pode ser mulher. E chamar-se Tiloca. Ou Cristina, cujo nome contém o Dele mesmo.
Muitos beijos para a Tiloca.
Daniel

Cris disse...

Meus queridos

Agradeço muito as palavras de carinho pelo aniversário da Tiloca.
Não existimos sem o outro para nos referenciar, isto é um fato concreto.
Sempre, indiscutivelmente precisamos uns dos outros nesta caminhada, embora, muitas vezes nos sentimos solitários dentro de nós.
Talvez seja porque todos nós possuímos um casulo onde podemos nos esconder.
Todos somos guerreiros,cada qual em seu lugar no pelotão.A cada um de nós é concedido um destino,nossa tarefa é cumpri-lo da melhor maneira possível.
Obrigada a todos os que estiveram comigo neste dia,e vou levar cada palavra a nossa Tiloca,prometi que sua vida seria bem mais que um numero no prontuário, a dela e de outros tantos que aos poucos apresentarei a vcs.
Beijo no coração de cada amigo.

Ana Loura disse...

Cris, um dia de atraso para abraçar a guerreira que contribuiu para que tu também o sejas. Grandes Filhas tem o Pai

Para Tiloca o abraço do meu coração, já que os braços não chegam aos dela.