sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Terminamos a viagem com o coração repleto de saudades....

O viajante finda esta encantadora e fabulosa viagem. Deixa nossos corações repletos de cores, sons, cheiros e sabores. Portanto, também nos deixa com muitas saudades, e com aquele gostinho na boca de quero mais.
Deixo aqui o agradecimento ao viajante pelo prazer da companhia, e a afirmação de que as cores desta vida dependem dos olhos que a admiram, e do coração que a abriga. E que foi muito bom viver este tempo de viagem através dos olhos e do coração deste viajante único e precioso.
Daniel de Sá tens a terceira mão, que emana raios de esperança e humanidade. Um imenso beijo neste teu coração que tanto amo.




“A arqueologia do silêncio”
(Título de uma crónica de José Ricardo Costa, no Jornal Torrejano)
O viajante faz o balanço da viagem. As melhores viagens são aquelas que não acabam quando chegam ao fim. Aquelas a que apetece sempre regressar pelos trilhos da memória. E uma vez mais o presente e o passado se confundem. Com a indecisão de saber se as coisas valem pelo seu tempo ou por si mesmas. Os sons poéticos de hoje serão o ruído de um motor de automóvel tal como há meio século era o chiar dos carros de bois? A beleza da arquitectura de betão poderá ter o valor sentimental de uma casa de pedra com porta e duas janelas? Um pintor pintaria com o mesmo sentimento um prado verde e um campo de papoilas? O pão, a massa sovada, as malassadas, o queijo de cabra, o doce de amora, as batatas-doces ou a abóbora assadas no forno têm ainda o mesmo sabor? E as rações trocam mesmo o gosto aos ovos ou à carne de porco dos torresmos de vinha de alhos, do chouriço, das morcelas?
O viajante não faz as contas deste balanço. Apenas cogita. De pé, no miradoiro de Santa Iria. Leu de alguém que falou na arqueologia do silêncio. Esse acto impossível de arrancar ao passado os sons que duraram instantes. E que sons tremendos se ouviriam por aqueles montes à volta! Quais os estampidos e gritos de uma batalha que acontece sem ter tido ensaio geral? Onde se mata e morre como uma que ali houve entre liberais e absolutistas?
Por aquela costa adiante, a ilha como que tem pena de se acabar a terra, alongando-se em sucessivas pontas mar adentro. Àquela distância, a serra da Tronqueira perde o aspecto selvagem, quase impossível de domar. O viajante nunca olha o pico da Vara, mesmo assim de tão longe, sem pensar em Ginette Neveu e no silêncio que se fez para o seu violino Stradivarius. Ou no coração de Edith Piaf, que ali também se partiu no corpo despedaçado de Marcel Cerdan.
Desde sempre que as montanhas cobram em vidas os seus direitos de passagem. E as das ilhas não têm sido menos avaras do que tantas outras. Gente que se perdeu nelas. Caminhantes de pé posto ou viajantes aéreos, como aqueles da Air France, perto de Algarvia, ou o jovem Marc Philip, que falhou por uma dúzia de metros o sobrevoo do cume do pico da Barrosa. Mas as montanhas são quase sempre os mais belos monumentos na paisagem. Ainda que feridas pelas torres da geotermia, que produz mais de 40% da electricidade que a ilha consome.
Como seria a ilha há seis séculos, como seria aquilo que viram os primeiros que cá chegaram? Deixemos essa revelação perdida no silêncio eterno de um suposto Diogo, ou Diego, e aos marinheiros que comandava.
O viajante suspende o balanço da viagem para pensar nesse outro tempo. Que terá sido o da estreia do espectáculo da ilha perante olhos europeus. Há quem aceite a hipótese de que ainda antes do nascimento de Cristo já por cá teriam estado os fenícios. Mas os fenícios não foram mais do que bons marinheiros de cabotagem, e naquele tempo era inconcebível arriscar uma viagem num mar imenso e desconhecido. Até quem acredita que eles contornaram toda a África só o faz com o pressuposto de que viajaram sempre junto à costa. E se os normandos alcançaram a América, bem no fim do século X, aportando primeiro na Gronelândia, essa viagem não passa de um passeio comparada à vinda desde Lisboa ou Lagos até aos Açores. Porque os normandos fizeram escala nas ilhas Faroe e na Islândia, já então habitadas havia séculos. E da Islândia à Gronelândia a distância é de trezentos quilómetros, apenas o dobro da que separa a Terceira de S. Miguel. Com boa visibilidade, talvez nunca tivessem sequer perdido terra de vista. Até meio do percurso, veriam ainda a Islândia; a partir daí, já poderiam ter vislumbrado a Gronelândia.
O que o suposto Diogo, dito de Silves mas que quase de certeza o não foi, e os seus marinheiros viram foi uma ilha coberta de uma vegetação tão densa que era difícil andar por terra adentro. Espécies desaparecidas já na Europa, e que aqui constituem sobretudo a floresta da laurissilva, por nela abundarem os louros. Ainda podem ser encontrados vestígios dela, quase somente nos lugares mais inacessíveis. Porque os outros foram a pouco e pouco sendo ocupados pela agricultura. Uma agricultura que primeiro se destinou a matar a fome, produzindo trigo que ia sobretudo para os soldados das praças do Norte de África, além de cevada para os cavalos. E abundante pastel, que dava aquele fulgurante azul que os artistas flamengos tantas vezes pintaram. Veio depois, desde finais do século XVII até bem passada a primeira metade do seguinte, o ciclo da laranja. O tal tempo cuja riqueza criou palacetes e barões. Mas terá feito muitos pobres e emigrantes na sua própria ilha, que iam em busca das quintas onde lhes dessem trabalho. O viajante calcula que talvez cerca de um terço do solo arável estivesse ocupado pelos laranjais. Terra que faltava para os pobres cultivarem o que comer. E, se a lenda conta que Maria Antonieta disse que o povo, por não ter pão, comesse brioches, por cá era tanta a abundância de laranjas que as crianças chegavam a ter um aspecto amarelado, devido ao excesso de ácido cítrico. A exportação chegou a atingir mais de cento e cinquenta milhões de laranjas, nos últimos anos da sua abundância.
Foi então que surgiu a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense. Não terá havido nunca, nos Açores, outro movimento cívico ou político mais importante do que este. E que determinou o futuro da ilha, com consequências que perduram ainda hoje. Homens que perceberam a tempo que o comércio da laranja não estaria para durar muito. Os novos meios de transporte – barcos a vapor e comboios – permitiriam aos consumidores do Norte da Europa um fácil acesso às laranjas de Valência ou da Sicília. Além disso, uma doença mortal ia insinuando já a destruição dos laranjais. Mas cerca de três décadas antes de que tal riqueza se extinguisse, aquela Sociedade começou a pensar em soluções. E foi então que, a pouco e pouco, se foram experimentando e introduzindo novas culturas. O ananás, o chá, o tabaco, a beterraba, a chicória. Uma riqueza mais democrática, porque dela podiam beneficiar, pelo trabalho a que obrigavam, também os mais pobres. Do mesmo modo, foi a altura de começar a reflorestação da ilha. Os muitos milhões de caixas, feitas para que cada uma levasse entre oitocentas a mil laranjas, haviam quase esgotado as árvores de boa madeira, destruindo mesmo por completo os bosques do vale das Furnas. E assim a criptoméria se tornou nessa presença tão frequente em todo o arquipélago.
Mas aquele grupo de benfeitores foi também educador da quase medieval mentalidade popular. Para além da fundação do jornal O Agricultor Micaelense, promoveu o ensino numa população com uma enorme percentagem de analfabetos.
S. Miguel passava a ocupar um lugar de guia no destino dos Açores. Ao mesmo tempo, o turismo iniciava o seu desenvolvimento. De tal modo que hoje é a esta ilha que chega a maior parte dos visitantes. Que quase a confundem com o próprio arquipélago. No entanto, se S. Miguel parece resumir ou conter todas as outras, essa ideia é falsa. Cada ilha tem características sociais e de paisagem que a tornam única e imprescindível. Há que assumir a definição política do arquipélago, que é uma região autónoma, como um elemento de identificação colectiva. E aproveitar o dinamismo micaelense para impulsionar o conhecimento de todo o arquipélago. Quem está aqui está também mais perto de Santa Maria, da Terceira, ou até das Flores e do Corvo. E cada ilha é um cadinho de alquimia das emoções que deslumbrará quem quer que seja.
(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

4 comentários:

Elisabete disse...

Já estou, também, a sentir saudades desta maravilhosa viagem e da sabedoria do guia.
Beijos aos dois

Ibel disse...

Esta viagem acabou com o viajante extasiado pela paisagem e pela tela de palavras que só as mãos que Deus beijou conseguem pintar.

Daniel disse...

E,como diz a Cristina, eu beijo o vosso coração.

Unknown disse...

Nada como uma bela viagem,é uma pena que ela tenha que chegar ao fim.
Agradeço ao Daniel,pela grande oportunidade de conehcer cada magia,e a minha mãe por publicar,pois não é apenas à ela que isso é importante.

Um grande beijo para você Daniel,e outro para você mãe.

Teamo.