quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Daniel de Sá - Ponta Delgada




Ponta Delgada, uma velha e bela cidade. O viajante pensa que ela cresceu ou tentou crescer muito depressa. O seu drama é o de todas as urbes que são as mais importantes da região onde se encontram. Tudo o que é novo há-de acontecer lá, há-de lá ir parar. Muitas vezes sem tempo para adaptações. E o pior foi que Ponta Delgada tentou primeiro crescer por dentro. Ponta Delgada, uma velha e bela cidade que o século XX não soube respeitar.

Pôs-se o novo ao lado do antigo. Pior, muitas vezes, deitou-se abaixo o antigo para erguer o moderno. Ponta Delgada era uma cidade onde os mercadores tinham tanta importância que há até uma antiquíssima rua que pelo nome lhes é dedicada. O centro histórico era o paraíso dessa maneira tradicional de vender e mercar. Mas, depois do cerco interior dos grandes armazéns, de todos os serviços públicos, do reboliço da vida concentrado em meia dúzia de ruas feitas para carroças e coches, a vida essencial da cidade mudou-se para a periferia. Aquela espécie de mercado árabe de tecto fechado, que gravitava nunca longe da Matriz, transferiu-se para grandes fortalezas de cimento e ferro onde se concentram as lojas de tudo. De um tudo sempre pronto a vestir ou a comer.

O viajante sente Ponta Delgada como um ser vivo. As noites da Imaculada Conceição eram um esplendor de luz e de criatividade em muitas dezenas de montras arrojadamente ornamentadas para comemorar o dia do comércio citadino. Com poucas excepções, são agora um cântico triste que não disfarça a vida que se perdeu dentro para a mudar para fora. Onde ela se esvai na monotonia da imitação de todas as cidades que querem parecer grandes.

Quando, num filme, o realizador quer dar a impressão de que se está num tempo antigo, o cenário é feito de casas velhas, meio derruídas umas, descoloridas todas. Mas, nesse tempo antigo, tais casas estariam sem dúvida completas, luzindo em cores novas e brilhantes. Ponta Delgada não ruiu nem perdeu a cor. Mas fizeram-na desistir de ser o que era. E, agora, um agora com várias décadas já, não há maquilhagem que devolva à bela dama a sua aparência ancestral. A ânsia de lhe encastoar modernices levou ao exagero de mudar, pedra por pedra, a ermida da Trindade para ao pé da entrada do jardim de António Borges. E foi posta uma bomba de gasolina no lugar onde ela estava.

No entanto, em Ponta Delgada ainda há muito para ver. Ainda há muito para amar. Foi no seu Liceu que o viajante, que nunca soube desenhar, fez prova de que sabia as outras coisas mais ou menos bem. E também por lá andou a tentar aprender essa difícil arte de ensinar. Como muitos outros, chegou a querer completar os conhecimentos com a iluminação divina, que muitos iam pedir de joelhos à porta da igreja do convento da Esperança. Para que o Senhor não se esquecesse, não faltava quem deixasse recado, escrito a lápis na tinta verde da madeira daquela porta. “Senhor Santo Cristo dos Milagres, ajuda-me no exercício de Francês.” “Senhor Santo Cristo, ajuda-me no exame de matemática.” E outros pedidos do género. Havia-os também mais aflitivos, de vida ou de morte.
Este Senhor Santo Cristo dos Milagres é devoção antiga. A belíssima imagem veio do convento da Caloura. Depois de uma primeira procissão em 1698, de visita a outros conventos de Ponta Delgada, a sua festa, hoje, é a maior destas ilhas. A igreja é igualmente muito bela. No lado poente da praça, a igreja de S. José, que foi do convento franciscano, é um monumento de grandes proporções e magníficos altares.

Como em toda a parte nestas ilhas, são os templos e conventos antigos o que há de mais belo para contemplar. A igreja daquele que foi o Colégio dos Jesuítas está hoje transformada num museu de arte sacra. Faltam-lhe alguns altares, um deles oferecido à igreja de Santa Luzia, nas Feteiras do Sul, como prémio por umas eleições que o partido regenerador lá ganhou. Ainda assim, a exuberância da talha de madeira é fascinante. O colégio foi adaptado a biblioteca pública. Para nascente, outro belo exemplar barroco, a igreja de S. Pedro, que foi capela real enquanto D. Pedro IV esteve por cá. E há o convento de Santo André, feito museu de generalidades, mas em que se destacam as colecções de pintura e de história natural. O viajante sente um fascínio tal pelo coro alto da sua igreja, que com frequência sonha que está naquele espaço de oiros e mistérios.

Passeando sem pressa nem mapa por Ponta Delgada, encontra-se, no entanto, uma ou outra surpresa agradável. Uma velha ruela que permaneceu intacta, ou quase; um palacete do tempo da riqueza da exportação da laranja, que fez fortunas e barões; um recanto que pode assemelhar-se a uma aldeia que se tivesse intrometido na cidade, sem perder o ar rústico das casas nem das pessoas.

Foi a sul que Ponta Delgada mais se descaracterizou a partir da década de 1940. O Estado Novo quis mostrar obra, e roubou ao mar espaço para inventar uma praça, onde havia um cais de embarque, e abrir uma avenida. Porque as praças e as avenidas eram alguns dos símbolos da propaganda do regime. Depois, não foi possível imaginar uma maneira de recuar na metamorfose. Ou de parar, pelo menos. Até ao aterro de uma das memórias mais expressivas de Ponta Delgada, a Calheta de Pêro de Teive, lugar de pescadores desde tempos imemoriais. A avenida acabou por acolher um pouco de tudo. Estilos de época e estilos de arquitecto. Cada qual interessado apenas na sua maqueta sem olhar à volta. Mas, quando a noite envolve a cidade, o espectáculo das luzes acaba por dar uma estranha beleza àquele espaço. Como que o reabilita, como que o justifica. Desde a fortaleza de S. Brás até ao moderno cais de cruzeiros das Portas do Mar, onde atracam navios que trazem gente de todo o Mundo. E que pode levar desta cidade só belas recordações. Se a alma servir de guia.

(De um texto para um livro turístico a publicar pela Ver Açor.)

Um comentário:

Cris disse...

Daniel
Chegar a Ponta Delgada guiada por teus olhos faz toda diferença.
Penso que até mesmo a própria sente-se melhor compreendida.
Você sempre me surpreende.