terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Caramurú, de Frei José de Santa Rita Durão

Moema - Vitor Meirelles-1875
"... Uma indígena, entretanto, prefere morrer a perder de vista o homem branco.
É Moema, que vai perecer tragada pelas ondas:Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Com a mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas* escumas desce ao fundo:Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:"Ah! Diogo cruel!" disse com mágoa
E sem mais vista ser, sorveu-se n'água."
CANTO X
I
Cheia de assombro a turba a dama admira
Tornada a si da suspensão pasmosa;
E da nova visão, que ali sentira,
Prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa.
« Mais bela que esse sol que o mundo gira,
E com dor (disse) de purpúrea rosa,
Vi formar-se no céu nuvem serena,
Qual nasee a aurora em madrugada amena.
II
Vi luzeiros de chama rutilante
Sobre a esfera tecer claro diadema
Da matéria mais pura que o diamante,
Que obra parece de invenção suprema;
Luzia cada estrela tão brilhante,
Que parecia um sol, precioso emblema
De admirável, belíssima pessoa,
Que à roda da cabeça cinge a coroa.
III
De ouro fino os eabelos pareciam,
Que uma aura branda aos ares espalhava,
E uns dos outros talvez se dividiam,
E outra vez um com outro se enredava;
Frechas voando, mais não feririam,
Do que um só deles nalma penetrava;
Cabelos tão gentis, que o espôso amado
Se queixa que de um deles foi chagado. IV
A fronte bela, cândida, espaçosa,
Cheia de celestial serenidade,
Vislumbres dava pela luz formosa
Da imortal soberana claridade.
Vê-se ali mansidão reinar piedosa,
E envolta na modéstia a suavidade,
Com graça, a quem a olhava tão serena,
Que, excitando prazer, desterra a pena.
V
Dos dois olhos não há na terra idéia,
Que astros, flores, diamantes escurecem,
Ou na beleza de mil graças cheia,
Ou nos agrados, que brilhando of'recem,
Num olhar seu toda dama se encadeia,
E mil votos à roda lhe aparecem
Dos que a seu culto glorioso alista,
Outorgando o remédio numa vista.
VI
Das faces belas,
se na terra houvera
Imagem competente que pintara,
As flores mais gentis da primavera
Pelo encarnado e branco eu comparara;
Mas flor não nasce na terrena esfera,
Não há estrela no céu tão bela e clara,
Que não seja, se a opor-se-lhe se arrisca,
Menos que à luz do sol breve faísca.
VII
Da boca formosíssima pendente
Pasma em silêneio todo o céu profundo;
Boca que um Fiat pronunciou potente
Com mais efeito que se criasse um mundo.
Odorífero cheiro em todo o ambiente
Do lábio se espalhava rubicundo;
Fragrância celestial, que amante e pia
No filho com mil ósculos bebia.
VIII
Todos suspende em pasmo respeitoso
O amável formosíssimo semblante,
E mais nele se ostenta poderoso
O soberano autor do céu brilhante:
Pois quanto tem o Empiro de formoso,
Quanto a angélica luz de rutilante,
Quanto dos serafins o ardente incêndio,
De tudo aquele rosto era um compêndio.
IX
Nas brancas mãos, que angélicas se estendem,
Um desmaiado azul nas veias tinto,
Faz parecer aos olhos, quando atendem,
Alabastros com fundos de jacinto;
Ambas com doce abraço ao seio prendem
Formosura maior, que aqui não pinto;
Porque para pincel me não bastara
Quando Deus já eriou, quanto criara.
X
Mas, se não se dedigna o verbo santo,
Por nosso amor, de um simbolo rasteiro,
Dentro parece do virgíneo manto,
Pascendo em brancos lídios um cordeiro.
Os olhos com suavíssimo quebranto
Lhe ocupa um doce sono lisonjeiro,
À roda os serafins, que o estrondo impedem,
Para o não despertar silêneio pedem.
XI
Aos pés da mãe piedosa superada
Vê-se a antiga serpente insidiosa,
De que a fronte na culpa levantada
Quebra a planta virgínea gloriosa;
E, enroscando os mortais já quebrantada,
Ao céu só da Virgem poderosa,
No mais fundo do abismo se submerge,
E o feral antro do veneno asperge.
XII
Ao ver beleza tanta, o pensamento,
Que a linda imagem surprendia absorto,
Ouve no centro dalma um doce acento
Que o peito enchia de vital conforto.
E, como infunde às plantas novo alento
O matutino orvalho em fértil horto,
Tal dos doces influxos na abundância
Dentro dalma eu senti nova constância.
XIII
« Catarina (me diz), verás ditosa
Outra vez do Brasil a terra amada;
Faze que a imagem minha gloriosa
Se restitua de vil mão roubada! »
E assim dizendo, nuvem luminosa,
Como véu, cobre a face desejada,
E faz que na memória firme exista
Entre amor e saudade a doce vista.
XIV
Assim conclui Catarina, enchendo
De duvidoso assombro a companhia.
Que imagem fosse aquela, iam dizendo,
Ou qual deles acaso a roubaria?
Se a Mãe de Deus, mistérios envolvendo,
Doutra cópia int'rior o entenderia,
Ou queria talvez que em santo trato
Se restitua nalma o seu retrato?
XV
Mas vela em tanto apareceu boiante
Que junto da Bahia o mar cortava,
Onde em bandeira, que lançou flamante,
O leão das Espanhas tremulava.
Vem à fala com salva fulminante,
E a franca nau, que à terra velejava.
Posto à capa o espanhol, cortês visita,
E o claro Diogo a visitá-lo incita.
XVI
E, depois que em festivo amigo abordo
O bom Gonzales o hóspede festeja,
Excitou-se nos dois claro recordo
De quem o hispano foi, quem Diogo seja;
Ambos nos braços, de comum acordo,
Um a outro mil ditas se deseja,
Reconhecendo o luso o nobre hispano,
Por um dos companheiros de Arelhano.
XVII
« Carlos o grande, o imperador famoso,
Grato por mim a saudar-te envia
(Disse a Diogo o hispano generoso,
Socorrido a outro tempo na Bahia).
Ouviu o invicto César, gracioso,
O teu obséquio à espanha monarquia,
E o serviço, que grande considera,
Por mim do seu agrado remunera.
XVII
E por que possa em caso equivalente
Retribuir-te aquela ação piedosa,
Salva aqui te ofereço a infausta gente,
Perdida nessa praia desditosa,
De cativeiro bárbaro e inclemente
Vivia na opressão laboriosa,
Até que destas armas protegida
Remiu na liberdade a infausta vita. »
XIX
Garcez então, da gente lusitana
O mais distinto que o discurso ouvia,
Confessa o benefício a força hispana,
E a história de seus casos principia: «
Depois que a gente abandonaste insana,
Com seu aviso, a lusa monarquia
Gente aqui mandou, naus poderosas,
Que as nações sujeitassem belicosas.
XX
Foi Pereira Coutinho o destinado
A fazer da Bahia a grã-conquista,
Herói no índico império celebrado,
Em quem nova esperança o luso avista,
Tudo tinha o bom chefe preparado,
Formosas naus ajunta e gente alista
E à grã-população que meditava
De um sexo e doutro as gentes convidava.
XXI
E, sem demora as praias ocupando,
Foi dos Tupinambás, com teu recordo,
As potentes aldeias visitando,
Com amiga aliança em firme acordo.
Do sertão vasto em numeroso bando
Desciam, festejando o nosso abordo,
Os carijós, tapuias e outras gentes,
Por fama do teu nome obedientes.
XXII
Gupeva e Taparica celebrados
Entre os tupinambás, nação que habita
Os campos da Bahia dilatados,
Antes de outros Coutinho solicita;
E, por vê-los contigo emparentados,
Povoar o Recôncavo medita
Da gente, que o teu nome reconhece,
Onde de dia a dia o povo cresce.
XXIII
Todo o fértil terreno utilizando,
Donde riqueza se oferece tanta,
Engenhos vai de açúcar fabricando,
Aldeias, casas, máquinas levanta.
E as drogas preciosas comutando,
A mandioca, arroz e a cana planta;
Nem dúvida que seja em tempo breve
A colônia melhor que Europa teve.
XXIV
Escolha faz nas tabas numerosas
Dos que acha no trabalho mais ativos;
Mas guarda para empresas belicosas
Os que em ferócia reconhece altivos.
A todos com maneiras amorosas
Propõe da fé cristã elaros motivos;
E, a condição notando em cada raça.
Uns doma eom terror, outros com graça.
XXV
Sabe que em gente tal nada se colhe,
Depois de endurecer na idade adulta,
Onde na puerícia os mais escolhe,
Por dar-lhe em breve a educação mais culta.
Nem dos pais violento algum recolhe;
Mas do proveito, que de alguns resulta,
Induz a gente bárbara que o segue
Que a prole à educação gostosa entregue.
XXVI
Em cuidadosa escola,
o temor santo Antes das artes a qualquer se ensina;
Dão-lhes lições de ler, contar, de canto,
E o catecismo da cristã doutrina;
Vendo-os o rude pai, concebe espanto,
E pelo filho a mãe à fé se inclina;
Nem de meio entre nós mais apto se usa
Que aquela gente bárbara reduza.
XXVII
E estes serão, se a idéia não me engana,
Meios à grande empresa necessários,
Que em breve a gente rude fora humana,
Com escolas e régios seminários.
Foge, sem se domar, a gente insana,
Se em forças e poder nos vê contrários;
Mas, educada em tenra mocidade,
Dilataria o reino e a cristandade.
XXVIII
Mas no meio das belas esperanças,
Com que a nova colônia florescia,
Move a serpe infernal desconfianças
Entre os tupinambás e os da Bahia:
Foi a causa infeliz destas mudanças
Um interesse vil de gente impia,
Que os povos ofendendo em paz amigos,
Cobrirarn toda a terra de inimigos.
XXIX
Gupeva foi dos seus abandonado;
Taparica foi mono; a lusa gente
Do gentio nos matos rebelado
Contínua perda nas lavouras sente.
Queimada a planta foi, perdido o gado,
E, cereado o arraial em contingente,
Viu Coutinho por bárbara violência
Perdido o seu tesouro e diligência
XXX
Na geral aflição do luso povo
A lugar se recorre mais tranqüilo;
Buscamos nos Ilhéus um sítio novo
Contra a turba feroz, seguro asilo.
E já Coutinho se dispõe de novo,
Vendo manso o gentio, a reduzi-lo,
Fabricando colônia de mais dura,
Menos fecunda, sim, mas mais segura.
XXXI
Mas os Tupinambás,
melhor cuidando,
Com promessas os nossos convidavam,
Com mil amigas provas protestando
De conservar a paz que antes guardavam,
Creu o infeliz Coutinho,
celebrando Pactos que segurança a todos davam;
E, sem temor de mais,
voltar queria
Ao Recôncavo antigo da Bahia.
XXXII
E já no mar a frota se equipava,
E cada um de nós na empresa absorto,
Sem temor, ou receio,
só cuidava Em fazer ao Recôncavo transporto,
Navegamos o espaço que distava,
E, tendo à vista o desejado porto,
Com fúria o mar aos astros se levanta,
Em cerração do céu que à vista espanta.
XXXIII
O ar caliginoso e em névoa impuro
Tirou-nos toda a vista, e sem destino
Batemos cegos num penhasco duro,
Sem termos do lugar notícia ou tino.
Neste momento horrível, transe escuro,
Suplicando o favor do céu divino,
Vemos a nau, com hórridos fracassos,
Desfazer-se na penha em mil pedaços.
XXXIV
Ficamos, como o entendes, alagados,
Nadando em meio da procela horrenda;
Uns das ondas se afogam devorados,
Outros na praia em confusão tremenda.
E eis que os cruéis tupis encarniçados
Com frechas se empenharam na contenda,
Por levar-nos da areia semi-vivos
À sorte dos seus míseros cativos.
XXXV
Muitos vimos dos bárbaros comidos,
Alguns dispostos ao funesto ocaso,
Aflitos todos nós e esmorecidos,
E esperando qualquer seu triste prazo;
Mas de ti sobretudo condoídos,
Triste Coutinho, que no acerbo caso,
Depois de triunfar da Ásia assombrada,
Perdeste infelizmente a vida amada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Gosto muito destras estrofes cheias de beleza estética, mas muito tristes.Um amor lindo, tragicamente desfeito.
Cris, que se passa? Continua a chover em Santa Catarina? Beijinhos nesse teu coração!

LIA